POEMA DE ABERTURA

  • EIS UMA VERDADE DE PRIMEIRA INSTÂNCIA: A CRIANÇA VIVE EM ESTADO DE POESIA, O POETA VIVE EM ESTADO DE INFÂNCIA. Carlos Vazconcelos

4 de dez. de 2009

O TUDO QUE EU CONTO - Apreciação do livro Fins d'águas, de Genuino Sales


 
(por Carlos Roberto Vazconcelos)

...não narrei nada à toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Esse fraseado de Riobaldo, personagem de Grande sertão: veredas, bem serviria de epígrafe para o livro Fins d’águas, de Genuino Sales. Nem tirar nem pôr. Consistiria em pecado, assim como nas Sagradas Escrituras. Não se muda um til. A escrita é límpida porque oriunda de mãos artesãs, com vasto tirocínio nos meandros da palavra. Esse envolvente livro é o sertão contado em miúdos. Sente-se o cheiro da terra como nas canções de Gonzaga e Humberto Teixeira.
Fins d’águas é livro de hoje e de amanhã. De hoje, pela atualidade da concepção, da tessitura, e é póstero pelo registro sutil, mas vigoroso do universo sertanejo, pelo testemunho humano e testamento lingüístico. Trabalha no campo da tradição. É documento de memória, legado fundamental para o acervo do inolvidável. Se o autor não engendra palavras, feito Guimarães Rosa, prima por incorporá-las à memória coletiva e resguardá-las das intempéries.
O livro é telúrico, mas com um teor profundo de universalidade que só os grandes mestres são capazes de conceber. De suas páginas jorra um manancial de palavras e expressões genuinamente nordestinas. Não cabe aqui a obsoleta discussão regional x universal. O autor é consciente do seu testemunho (quase dizia protesto), não se rende a facilidades, prefere os valores superlativos. Não que tenha a deliberada intenção do combate, da ruptura contra a cultura globalizada (não é do seu feitio), mas simplesmente detém a plena vocação para o telúrico (e isto não é pouco), provando que sertão é (mesmo) dentro da gente. Fosse essa prosa lançada em plena geração de 30, estaria consagrada aos altos píncaros. Sendo lançada hoje, não é tardia, mas reabilitadora de um universo real, autêntico, co-existente com a cultura massificada.
Fins d’águas é obra fotográfica, não pela gratuidade descritiva, mas pela arquitetura minuciosa do ambiente regional e seu folclore, que impregna a memória ou o imaginário do leitor.
Genuino Sales transpõe para o papel a dicção inconfundível do exímio contador de causos que é, e adiciona a este predicado o estilo primoroso, esmerado, sem deixar de ser espontâneo.
A sensualidade empresta leve tempero a várias das narrativas (...os peitos vazavam do corpete e mostravam-se no busto como duas peças milagrosamente torneadas, com bicos morenos endurecidos pelo contacto da brisa.) O erótico e o humorístico se revezam, às vezes até se misturam, como no final do conto Nanico. A galeria de tipos talhada com precisão atesta a medida humana da obra. A violência, a religiosidade, o sobrenatural, o lírico, definem a tônica desse universo fantasticamente real que é o sertão. O sertão de Rosa, de Rachel, de Graciliano, o sertão genuíno. Podemos terminar como iniciamos, dando voz ao Riobaldo: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.

29 de nov. de 2009

UM TIPO INESQUECÍVEL (Homenagem ao escritor Fernando Câncio )




por Carlos Vazconcelos

Em nossas vidinhas tão efêmeras, conhecemos muitas pessoas. De todas as marcas, feitios e naturezas.
Lembro que as velhas e boas revistas Seleções traziam uma interessante coluna intitulada Meu Tipo Inesquecível. Eram testemunhos de vida, retratos de homens e mulheres que não passaram despercebidos por este mundo. 

Eu também conheci um tipo inesquecível. Estava iniciando o curso de Letras, quando tomei conhecimento da existência de um grupo de escritores chamado Ceia Literária. Era tudo o que eu queria. Muito jovem, e vindo do interior, andava à procura do meu nicho, de um reduto de pessoas com quem pudesse compartilhar minhas afinidades literárias. O convite chegou em sala de aula, através do professor Valdemir Mourão, fundador do grupo, à época titular da cadeira de Lingüística na UECE.

Passei a freqüentar as reuniões da Ceia Literária com assiduidade. Identifiquei-me de pronto com todos os membros do grupo, pessoas inteligentes, sensíveis e solidárias. 

Um dos membros da Ceia Literária, em especial, muito me chamou a atenção, pela originalidade, espirituosidade e carisma: Fernando Câncio de Araújo, o velho mais jovial que conheci. Ainda hoje, do auge dos seus oitenta e sete anos, se o assunto é idade, responde sem hesitação:
O que importam meus cabelos brancos, 
se minha alma ainda faz pipi na cama? 

Imediatamente lembro outro poeta querido, Mário Quintana:
Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:
Eu quero meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai...
Que envelheceu um dia, de repente!

Antonio Carlos Villaça, no seu livro Os Saltimbancos da Porciúncula, assim descreve Quintana: Um velhote buliçoso, que não tinha pose, nenhuma afetação. Era todo leveza, espontaneidade, fluidez. Fernando Câncio também é assim.

Certa vez, saíamos de uma reunião da Ceia Literária, num edifício da rua Liberato Barroso. O elevador, lotado, o Fernando, gordo. Todos esquivos para não pisar um pé alheio e empenhados em manter a devida distância do patrimônio do outro. O poeta observou que alguém entrara por último, quase espremido pela porta. Lá embaixo, quando a bendita porta se abriu e acabou-se o sufoco, Fernando não se conteve e desferiu para riso geral:
O elevador é um dos poucos lugares onde se faz valer aquela lei de Deus: “Os últimos serão os primeiros.”

Fernando cursou as “primeiras e únicas letras” (como faz questão de esclarecer), no Grupo Escolar da Fênix Caixeral. Na verdade, cursou até o 4° ano primário, mas considera-se autodidata. Aprendeu a ler e nunca mais quis se separar dos livros. Leu os grandes clássicos cearenses, brasileiros e estrangeiros. Escreveu inúmeros livros, alguns com títulos intencionalmente esdrúxulos e quilométricos (que nada têm a ver com o conteúdo), apenas para roubar a atenção do leitor: Os Sapos do Castelo de Montserrat ou As Aventuras de um Lagostim Daltônico. Foi durante muito tempo o gerente do Cine Art. Sucedeu-se por dezoito anos no cargo de presidente da UBT (União Brasileira de Trovadores) e se dependesse dos sócios permaneceria por mais dezoito. Marcou história no comando dessa agremiação. De todos os gêneros, o que mais lhe dá satisfação é a Trova, sendo ele um dos melhores destas terras, na arte dos quatro versos. Querem ver? 

Saudades, marcas doridas
de um momento que passou
bandeirinhas coloridas
que o tempo nunca rasgou
ou
Era um poeta de mão cheia,
Hippie, cabelos revoltos...
Só poetava na cadeia,
Detestava versos soltos

Fernando Câncio é também um exímio recitador. Uma vez no palco, contagia a platéia com o carisma e a desenvoltura de um mestre. Certo dia, comprovando a tese de que a criatura pode tornar-se independente do criador, criou Hortência, a amiguinha de infância transformada na mulher sonhada... Boquinha de forno...! Forno! Jacarandá! E Hortência virava lágrimas... de uma saudade perdida? de uma lembrança imaginada? É que o universo paralelo do artista é muito mais vasto do que a própria realidade.

Confessou-me um dia que nunca mais recitaria Hortência. A personagem havia crescido dentro dele, estava se exteriorizando, tomando conta de seu coração, fazendo-o chorar em público. Hortência passou a existir, definitivamente. Não mais nas páginas amareladas do livro, mas na lucidez de sua memória, como ser concreto, parte de seu passado, mulher de carne e osso.

Fernando Câncio é uma dessas raras pessoas a quem temos orgulho de conhecer. Sua grandeza está na simplicidade. Por isso, para falar sobre ele temos que usar palavras simples, despojadas de vaidade, mas carregadas de valor.

Algumas vezes fui visitá-lo, na rua Floriano Peixoto. Usufruí momentos de gratificante conversa. Dona Zilnah, sua falecida esposa, nos recebia sempre muito solícita. Uma tarde, saí rumo àquela rua. Não para visitar o Fernando, que o horário não era propício, mas apenas para levar-lhe umas guloseimas. A casa estava silenciosa e tristonha. Bati. A secretária veio atender pelo muro do jardim. Contou-me que dona Zilnah já não estava mais entre nós. Senti o golpe. Desagradável surpresa. Eu estava a caminho de uma livraria, localizado na Aldeota. Dentro do carro, larguei-me a refletir sobre o mistério doloroso da morte e os sentimentos a que ela nos remete. Garimpando os livros, saltou-me aos olhos o Meu Nome é Saudade, de Fernando Câncio, que é dedicado justamente à Dona Zilnah. Quanta coincidência! Não poderia deixar de adquiri-lo, em sua 1ª edição, de 1979, com autógrafo do autor. Este mesmo que está repousando aqui ao meu lado. 

Para quem não sabe, Fernando Câncio também é pintor. Na parede do meu apartamento, tenho um óleo sobre tela, que ele fez especialmente para a capa da coletânea Ceia Maior, em comemoração aos dezoito anos do grupo Ceia Literária

Fernando Câncio, você mora na minha estante, na minha parede e principalmente na minha memória. E não paga aluguel.

8 de nov. de 2009

POEMA DE BORDO


Desenho da minha filha Eloise (5 anos).

Necessito das palavras
Como âncora dessa nau
Viajei mares afora
Tanto verso tanto sal


As palavras se dissipam
São metáforas do tempo
Sou pescador de imagens
Navegando em barlavento


Necessito das palavras
Como leme dessa nau
Naveguei outras tormentas
Abismo gra(mar)tical


Palavras são balsas verdes
Que conduzem a muitos portos
Atravessam oceanos
Unem países remotos


Muito além da Taprobana
Já depois do Bojador
Toda fala se irmana
Laço, Lácio, última flor


Andar caminhos diversos
À procura de um país
Náufrago de vida e versos
Fugir para ser feliz


Fui à luta remador
Coração extraviado
Onde está escrito amor
Leia-se: desesperado


Vide bula vide verso
Nunca mais fiz um poema
Dentro da alma o universo
Dentro da vida o dilema


Carlos Vazconcelos
(do livro A Inquietude da Busca)

7 de nov. de 2009

CIDADEZONA


Automóveis entre edifícios
homens entre escrivaninhas
pensar labor cansar


Um executivo vai depressa!
Um bancário vai depressa!
Um contínuo vai depressa!


Depressa!! Os outdoors mal conseguem olhar.
Êta vida louca, meu Deus!

Carlos Roberto VaZconcelos
(Do livro A Inquietude da Busca)

MEUS ZOILOS

Pus um Z, ovelha negra,
no coração da família;
foi feito faca de ponta,
uma navalha de afronta,
foi quase um tiro no pé;
um violino no samba,
uma zabumba em Chopin.
Fui acusado de ingrato,
renegado, insolente,
despistador de brasão
(peço o perdão que me assente).
Venho eu mesmo em meu socorro.
Permita-me e eu discorro:
por mais que soe bizarro
o Z de zorra e zoada
é minha marca do Zorro.
Constritiva, fricativa,
o Z é letra que arranha,
que zanga, zoa e zune,
azucrina e atazana.
Para a culpa que me pune
não há razão mais profunda:
alveolar artimanha
de um escritor de segunda.
Z de zaga e de zureta
de azougue azedo zumbi
de zebra zebu zunir
de zangão e de zambeta
peço a todo detrator:
tire o azorrague da mão
que aquela distinta letra
sela o nome do escritor
(sabor de contravenção)
agredindo a ortografia
desbancando a eufonia
mas o meu nome civil
grafo com o S sutil
de simpático e sincero
porque tudo o que mais quero
(com o sinal mais sinuoso
ou com o outro, anguloso)
é continuar Vas(z)concelos.

Carlos VaZconcelos