POEMA DE ABERTURA

  • EIS UMA VERDADE DE PRIMEIRA INSTÂNCIA: A CRIANÇA VIVE EM ESTADO DE POESIA, O POETA VIVE EM ESTADO DE INFÂNCIA. Carlos Vazconcelos

21 de jul. de 2011

ATUALIDADE DE UM CLÁSSICO





por Carlos Vazconcelos


Um clássico sempre nos surpreende. Se não revela as grandes verdades que almejamos, enleva-nos com pequenos achados. Na busca de abrir caminho através da densa barreira dos Livros Que Não Li ou dos Livros Que, Se Eu Tivesse Mais Vidas Para Viver, Certamente Leria de Boa Vontade (como sugere Italo Calvino), abri esta semana as páginas de A Arte Poética de Horácio. Na realidade, uma epístola escrita aos Pisões com o intuito de prestar aconselhamentos quanto ao ato criador. Com o tempo consolidou-se, do mesmo modo que a outra Arte Poética, a de Aristóteles, como interessante manual de estética aplicada à literatura e, particularmente, ao teatro.


A Poética de Horácio é o manifesto máximo do classicismo contra qualquer tipo de vanguarda, pois para ele liberdade é exceção, não a regra. Numa época em que se busca um vanguardismo a qualquer custo, um desejo convulsivo de inovar a arte e seus mecanismos, mesmo que o conteúdo soe inválido e a poética estéril, Horácio, como um bom clássico, é atualíssimo quando adverte: “Vós, que escreveis, tornai a matéria igual às vossas forças e pesai longamente o que vossos ombros se recusam a carregar”; ou quando indaga: “Começou-se a moldar uma ânfora, por que ao girar da roda saiu um pote?”


Muitos artistas hoje não compreenderam as lições de seus mestres. Buscam a ruptura, mas não percebem que em arte toda transgressão deve ser passageira, isto é, durar enquanto transgressão. Quebrar paradigmas às vezes é essencial, mas o ato de ruptura não pode, por si só, virar estética. Quando isso acontece, os transgressores provam do próprio feitiço. Concordo com o escritor e crítico Affonso Romano de Sant’Anna, quando afirma que “a melhor homenagem que podemos fazer aos mestres contestadores de ontem, é contestá-los hoje.” Não foi à toa que Marcel Duchamp (charlatão e gozador, para uns; rei da vanguarda artística, para outros) afirmou: “Joguei o urinol na cara deles como um desafio e agora eles o admiram como um objeto de arte.” Não se deve empurrar gato por lebre. O ato de ruptura não se dilui em estética, apenas a provoca. A Poética de Horácio amolda-se perfeitamente à sexta definição de Calvino: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.”


Com base no dualismo de Platão (esteticismo/eticismo), Horácio pregava que a arte tinha duas finalidades: agradar e educar. “Não basta que os poemas sejam belos, é preciso que sejam doces”, afirma ele. Para o esteticismo a função da arte é ser arte; para o eticismo a função da arte é ser útil. Nesse ponto, dissocia-se do pensamento de Aristóteles. O autor da outra Poética valoriza a arte como imitação e aceita que o feio na natureza pode agradar na arte, como por exemplo um cadáver bem pintado. Na poética de Horácio, há um permanente paralelo entre a pintura e a literatura, e ele inclusive admite que pintores e poetas têm o poder de ousar, mas a razão deve dominar a fantasia e o sentimento. O artista que pretende variar com prodígios um tema uno, termina por pintar delfins nas selvas e javalis nas ondas. Um poema concebido sem critérios estéticos, onde apenas o engenho participe e não a arte, pode assemelhar-se ao quadro de um pintor que quisesse ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, resultando no ridículo quadro da mulher-cavalo-ave-peixe, o que nos faz deduzir que o Surrealismo seria a estética inversamente proporcional ao classicismo de Horácio. Mais ainda: Seria sua inimiga mortal. Não que condenasse o fantástico, onde se misturam coisas falsas e coisas verdadeiras, mas a falta de coerência.


Dispensados certos radicalismos e outros aspectos que nos soam hoje como anacrônicos, há muita atualidade nas propostas do autor grego. Ele aconselha que toda obra literária seja submetida aos ouvidos de um crítico severo e depois permaneça guardada até o nono ano, e justifica: “O que não tenhas editado, te será permitido destruir. As palavras soltas não podem tornar.” Critica os poetas romanos que abandonaram as pegadas dos gregos, principalmente de Homero, criador da fórmula perfeita dos hexâmetros com que escreveu a Odisseia, e dá mais esta lição atualíssima e permanente: “Nem o Lácio seria mais potente pelo valor e pelas armas gloriosas do que por sua língua, se o trabalho lento da lima não aborrecesse a todos os nossos poetas. Vós, ó sangue de Pompílio (1), repreendei o poema que muitos dias e muitas correções não desbastaram e não burilaram por dez vezes com a unha aparada.”


No que diz respeito ao teatro, sua pretensão de “pureza” é ainda maior, pois condena o gênero que descamba em outro, como a epopeia retorcida em comédia por falta de perícia dos atores ou do autor do texto. Não lhe agradam esses dois gêneros. Prefere o drama satírico, espécie de moderador entre o riso e o siso. Consagrado como poeta do amor e da paz, rejeitava o espírito guerreiro do romano, condenando por consequência cenas violentas no teatro, boas para serem contadas, jamais para serem representadas, como por exemplo Medeia matando os filhos. Em outras palavras, o classicismo nada sabe do naturalismo. É tal o radicalismo de Homero que ele considerava impraticável jovens representarem papéis de velhos ou vice-versa. Podemos então concluir que a Poética de Horácio amolda-se também ao preceito número 14, de Calvino: “É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.”


Por fim, comungo ainda com Calvino para enfatizar a importância de se ler propriamente as obras: “A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário” e a Todorov: “Na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos. O Ensino Médio, que não se dirige aos especialistas em literatura, mas a todos, não pode ter o mesmo alvo; o que se destina a todos é a literatura, não os estudos literários; é preciso então ensinar aquela e não estes últimos.”


Afinal, Horácio é clássico por que é atual ou é atual por que é clássico? Ora, a questão é tão imperativa quanto ler esta resenha e não ler o livro do qual ela trata. Portanto, quem deseja compreender A Poética de Horácio, deve ir imediatamente à livraria ou a biblioteca, e não se contentar com apreciações como esta.


[1] Os Pisões, a quem a carta de Horácio se destina, pretendiam-se descendentes de Numa Pompílio, segundo rei de Roma.

Bibliografia


CALVINO, Italo. Se um viajante numa manhã de inverno. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Planeta De Agostini, 2003.


__________. Por que ler os clássicos. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007.


SANT’ANNA. Affonso Romano. Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2003.


TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 2. ed. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2009.


TRINGALE, Dante. A arte poética de Horácio. São Paulo: Musa Editora, 1993.

20 de jul. de 2011

OS LIVROS, AS VIAGENS


Por Carlos Vazconcelos


Todos dizem que ler é viajar. Isso é fato consumado, mesmo na opinião de quem nada lê. Ler Josué Montello, por exemplo, é transportar-se para o Maranhão. Jorge Amado nos leva à Bahia. Com Machado, retrocedemos ao velho Rio de Janeiro imperial (e às profundezas da alma humana). João Guimarães, Graciliano e Rachel nos conduzem a uma pátria chamada Sertão.


E assim segue o leitor, nas mais variadas e pitorescas aventuras, turismo espiritual. Desse modo, quem tem boa biblioteca possui de saldo uma agência turística virtual, sem os protocolos e a burocracia das convencionais.

 
Pois estive viajando, esses dias. Li Érico Veríssimo e viajei ao México...


– Ao México, tchê?


Sim, senhor! E de trem. Mas tudo bem, compreendo a estranheza. Quem lê Veríssimo viaja não é para os pampas? E escuta aquela música ao longe (talvez um solo de clarineta), vinda do tempo e do vento, que varre os lírios do campo pelos caminhos cruzados?


Floreios à parte, explicarei melhor. Estou me deleitando com a leitura do livro intitulado México, do escritor gaúcho. É daqueles livros injustamente esquecidos. Como se dizia antigamente, o lado B do long play. São notas de viagem, testemunhos de vida, capítulos de humanidade de um escritor que, ao sentir-se sufocado pela faina diplomática, em Washington, consumido pelo desejo de umas férias, chega em casa e sugere à mulher:


– Vamos ao México?


Esse bem poderia ser o título do livro, pois realmente o convite se estende ao leitor. Qualquer um o aceitará prontamente depois de ler o Prólogo, onde o autor trava um delicioso colóquio com o mestre William Shakespeare em torno das razões que o aliciam a arredar pé da metrópole americana. Lá, tudo funciona direitinho, um modelo de organização, um primor de urbanismo. E sentindo-se um gato preto em campo de neve, desabafa ainda: Sinto saudade da desordem latino-americana, das imagens, sons e cheiros de nosso mundinho em que o relógio é apenas um elemento decorativo e o tempo, assunto de poesia.


Sempre em que se tratar de um grande autor, devemos dispensar um pouco mais de atenção a alguns livros considerados menores. Um grande escritor é multifacetado e dificilmente sua pena admite um rótulo impostor.


Para uma grande pena, não existe literatura amena. Exemplo: na consagrada obra machadiana, não esqueçamos jamais de ler O Alienista.


Com tantas investidas assediantes em torno de Gabriela ou Tieta, alguém se lembrará de ler Terras do Sem-fim, de Jorge Amado, talvez o seu melhor romance?


Da vasta bibliografia de Érico Veríssimo, num cantinho escuso de prateleira, achamos o México, a paisagem do México, o sentimento do México.


Viaje! Não perca tempo! Vá à biblioteca ou livraria mais próxima, solicite seu livro. E quando puder (não desaconselho) solicite também seu passaporte. Você viajará com conhecimento de causa.


Aproveite as palavras veríssimas do mestre Érico: A vida não merece bocejos.


E hasta la vista!







8 de jul. de 2011

CORROSÃO



Carlos Vazconcelos

por dentro do casarão
os ratos roem o tempo
roem o passado onírico
vitrola, salão de festa

deitado porém insone
ouço os ruídos, roídos
tenho medo de dormir

roem as rótulas da porta
roem as ripas e os ritos



ranhuras no corrimão
rasuras na certidão
rasgos no cimo do oitão



por dentro do casarão
cupins corroem as lembranças
corroem o passado intato
bengala, biblioteca



insone porém deitado
ouço o ranger do portão
tenho medo de acordar



quedam-se vigas e estrados
quedam-se torres e lendas

som de relógio enguiçado
rumor de reza rosário
rumor de riso refrão

por dentro do casarão
traças estraçalham trevas
desvirtuam tradições
alcova, criado-mudo



deitado insone porém
ouço grilos, pirilampos
tenho medo de sonhar



rompe-se a cumeeira
rompe-se a madrugada



rastro parede porão
retrato recordação
correntes e corrosão